“–Olha, você quer saber de uma coisa? Eu vou
escrever o que puder, pois a sua cabeça não aguenta mesmo”. O irritado
desabafo foi manifestado ao jovem Chico Xavier, próximo de completar 21 anos,
pelo poeta Augusto dos Anjos que tentava ditar ao médium um poema, enquanto ele
regava os canteiros de alho existentes nos fundos da venda do senhor José
Felizardo, como fazia todos os dias, após as seis da tarde. Lembrava Chico ser
um momento de grande prazer tal atividade, porque ele se isolava de todo
serviço no modesto armazém, ficando plenamente à disposição dos Espíritos
amigos, enquanto as mãos despejavam água na plantação. Augusto dos Anjos,
registrado Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos, nasceu em Engenho do Pau D’
Arco, na Paraíba, em 20 de abril de 1884, desencarnando 30 anos depois de
pneumonia, em 12 de novembro de 1914, na cidade de Leopoldina, Minas Gerais,
onde era diretor de Colégio. Formado advogado em 1907, pela Faculdade de
Direito do Recife, não exerceu a profissão, dedicando-se ao magistério na
Paraíba, lecionando português, até que após uma briga com o Governador em
exercício, mudou-se para o Rio de Janeiro, passando a residir na casa de uma
irmã, que desconfiava de sua sanidade mental pelo fato de falar em voz alta
enquanto compunha seus versos no quintal de sua anfitriã. A propósito, um amigo
contava que Augusto compunha ‘de cabeça’, gesticulando e pronunciando os versos
de forma excêntrica, só depois transcrevendo o poema para o papel. Chico, por
sinal, em resposta no primeiro programa PINGA
FOGO a que compareceu, disse que o Espírito Augusto dos Anjos lhe dissera
que gostava de escrever no campo e que aquela era uma hora - o final de tarde
já citado – em que ele queria ditar para que, ouvindo, pudesse compreender com
mais facilidade na hora de escrever. Augusto casou-se em 1910, perdendo
prematuramente o primeiro filho dessa união, em 1911. Poeta precoce já que aos
sete anos tinha escrito seu primeiro trabalho, teve seu único livro publicado
em 1912, sob o sugestivo título EU,
não se perdendo outros trabalhos por iniciativa de um amigo que os reuniu na
obra, OUTRAS POESIAS. Com estilo
oscilando entre o simbolismo e o parnasianismo, é considerado pelo conhecido
poeta Ferreira Gullar, como um expoente do pré-modernismo. Materialista, grande
crítico do seu tempo, influenciou-se fortemente por pensadores céticos, como
Spencer, Haeckel e Schopenhauer. Sua poesia chocou a muitos, por romper o
modelo formal clássico, preocupando-se em utilizar um conteúdo que a subverte
através de uma tensão que repudia e é atraída pela ciência. Ciência que marca
fortemente seu trabalho, através de termos e conceitos científicos. As imagens
de sua poesia se caracterizam pela teratologia exacerbada por imagens de dor,
horror e morte. Trinta e um anos depois de sua morte e catorze depois do
primeiro encontro com Chico citado há pouco, na noite de 17 de junho de 1945, o
médium após atender as obrigações profissionais junto ao seu chefe envolvido
numa exposição agropecuária em Leopoldina, foi visitar o Centro Espírita Amor
ao Próximo, daquela cidade. Um dos presentes à reunião pública que congregava
algumas dezenas de pessoas, meio que descrente, comentou que “se os
Espíritos se comunicam conosco, seria interessante que o Augusto dos Anjos
viesse contar, em versos, com foi seu enterro já que morrera naquela localidade”.
E o poeta veio mesmo, psicografando através de Chico, que se postara
concentrado junto à mesa de trabalho, a descrição, em versos, de suas primeiras
impressões após a morte sob o título RECORDAÇÕES
EM LEOPOLDINA, onde, em 15 estrofes, começa contando: “-À
sombra amiga destes montes calmos,
/ Meu pobre coração de anacoreta, / Amortalhado
em fina roupa preta / Desceu à escuridão dos sete palmos”.
Pede, a certa altura: “-Oh! Que ninguém perturbe os meus destroços, / Nem
arranque meu corpo à última furna,
/ É Leopoldina, a generosa urna, / Que,
acolhedora, me resguarda os ossos”. Por fim, após tecer ilações
curiosas em torno das suas observações e percepções da substancial mudança de
forma de vida, Augusto dos Anjos termina dizendo: “- Bendita seja a Terra, augusta e
forte, / Onde, através das vascas da agonia, / Encontrei
a mim mesmo, em novo dia, / Pelas revelações de luz da morte”.
Retornando ao canteiro de alho em que se deu o singular diálogo com que abrimos
este comentário, rememorando o, até certo ponto cômico desfecho, Chico disse
que a poesia intitula-se VOZES DE UMA
SOMBRA – talvez, para contrastar com
MONÓLOGO DE UMA SOMBRA, escrito
quando ainda estava encarnado. Inserida no livro PARNASO DO ALÉM TÚMULO (feb), a poesia contém “só o que conseguiu filtrar por
mim, mas era muito mais bonita. Falava de fótons, cores, de mundos, galáxias”.
Admite: “-Quem era eu para entender aquilo, eu que estava regando canteiros de
alho?”. Por ser extensa, composta de vinte estrofes de cinco versos,
por limitações de espaço, a reproduziremos parcialmente demonstrando o porquê
das dificuldades do moço de baixa escolaridade de um vilarejo inexpressivo. “-Donde
venho? Das eras remotíssimas
/ Das substâncias elementaríssimas, / Emergindo
das cósmicas matérias. / Venho dos invisíveis protozoários, / Da
confusão dos seres embrionários,
/ Das células primevas, das
bactérias. / Venho da fonte eterna das origens, / No
turbilhão de todas as vertigens, / Em mil transmutações, fundas e enormes; / Do
silêncio da mônada invisivel, / Do tetro e fundo abismo, negro e horrível, /
Vitalizando corpos multiformes.
/ Sei que evolvi e sei que sou
oriundo / Do
trabalho telúrico do mundo, / Da Terra no vultoso e imenso abdômen; / Sofri,
desde as intensas torpitudes
/ Das larvas microscópicas e rudes, / À infinita desgraça de ser homem”.
Mais adiante, diz: “-E vejo os meus incógnitos problemas / Iguais
a horrendos e fatais dilemas,
/ Enigmas insolúveis e profundos; / Sombra
egressa de lousa dura e fria,
/ Grito ao mundo o meu grito que se
alia / A todos os anseios gemebundos: /
“-Homem! Por mais que gastes teus fosfatos / Não
saberás, analisando os fatos, / Inda que desintegres energias, / A
razão do completo e do incompleto,
/ Como é que em homem se transforma o feto /
Entre os duzentos e setenta dias.
/ A flor de laranjeira, a asa
do inseto, / Um estafermo e um Tales de Mileto, / Como
existiram, não perceberás: / E nem compreenderás como se opera / A
mutação do inverno em primavera, / E a transubstanciação da guerra em paz”.
Finalizando, conclui: “-Os fenômenos todos geológicos, /
Psíquicos, científicos, sociológicos,
/ Que inspiram pavor e inspiram
medo; /
Homem! Por mais que a ideia tua gastes,
/ Na solução de todos os
contrastes, Não saberás o cósmico segredo.
/ E apesar da teoria mais abstrusa /
Dessa ciência inicial, confusa,
/ A que se acolhem míseros
ateus, /
Caminharás lutando além da cova,
/ Para a Vida que eterna se
renova, / Buscando as perfeições do Amor em Deus”.
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