-“A experiência social na Terra vive tão
distraída nos jogos de máscara, que a visita da verdade sem mescla, a qualquer
agrupamento humano, por muito tempo ainda será francamente inoportuna”, comenta em mensagem psicografada por Chico
Xavier, um industrial, administrador e homem público identificado, pela
inicial G., por razões
compreensíveis. A visão imediatista da vida em nossa realidade existencial
certamente é a causadora dessa distorção compartilhada pela maioria das
criaturas humanas que habita o planeta Terra. Mas, a, como ele diz, verdade sem
mescla, representada pela morte aguarda a todos na esteira do tempo que vai se
acumulando no nosso histórico de vida. As marcas do desgaste do revestimento
chamado corpo físico se evidenciam na comparação imagem do espelho com a foto
de anos atrás. Avaliado pelos critérios de nossa Dimensão como político e
administrador de méritos indiscutíveis, G.
não se sentia dessa forma após a transposição para outro Plano Existencial. Confessa
que “não
admitia que o sepulcro o requisitasse tão apressadamente à ‘meditação’.
A
angina, porém, espreitava-o vigilante, e fulminou-o sem que pudesse lutar.
Recorda-se de haver sido arremessado a uma espécie de sono que não lhe furtava
a consciência e a lucidez, embora lhe aniquilasse os movimentos. Incapaz de
falar, ouviu os gritos dos seus e sentiu que mãos amigas lhe tateavam o peito,
tentando debalde restituir-lhe a respiração. Não saberia precisar quantos
minutos gastou na vertigem que lhe tomara de assalto, até que, em sua aflição
por despertar, notou que a forma inerte o retomava a si, que sua alma
entontecida regressava ao corpo pesado; no entanto, espessa cortina de sombra
parecia interpor-se agora entre os seus afeiçoados e a sua palavra ressoante,
que ninguém atendia... Inexplicavelmente assombrado, em vão pedia socorro, mas
acabou por resignar-se à ideia de que estava sendo vítima de estranho pesadelo,
prestes a terminar. Após alguns minutos de pavoroso conflito que a palavra
terrestre não consegue determinar, teve a impressão de que lhe aplicavam sacos
de gelo aos pés. Por mais verberasse contra semelhante medicação, o frio
alcançava-lhe todo o corpo, até que não pude mais...Aquilo valia por expulsão
em regra. Procurou libertar-se e viu-se fora do leito, leve e ágil, pensando,
ouvindo e vendo. Contudo, buscando afastar-se, reparou que fio tênue de névoa
branquicenta ligava sua cabeça móvel à sua cabeça inerte. Indiscutivelmente
delirava – dizia de si para consigo -, no entanto, aquele sonho o dividia em
duas personalidades distintas, não obstante guardar a noção perfeita de sua
identidade. Apavorado, não conseguia maior afastamento da câmara íntima, reconhecendo,
inquieto, que o vestiam caprichosamente a estátua de carne, a enregelar-se.
Dominava-o indizível receio. Sensações de terror neutralizavam seu raciocínio.
Mesmo assim, concentrou suas forças na resistência. Retomaria o corpo. Lutaria
para reaver-se. Contudo, escoavam-se as horas e, não obstante contrariado,
viu-se exposto à visitação pública. Mas, ele que se sentia singularmente
repartido, observou que todas as pessoas com acesso ao recinto, diante dele,
revelavam-se divididas em identidade de circunstâncias, porque, sem poder
explicar o fenômeno, lhes escutava as palavras faladas e as palavras
imaginadas. Muitas diziam aos seus familiares em pranto: - Meus pêsames!
Perdemos um grande amigo... E o pensamento se lhes esguichava da cabeça,
atingindo-o como inexprimível jato de força elétrica, acentuando: -“Não
tenho pesar algum, este homem deveria realmente morrer”. Outras se
enlaçavam aos amigos, e diziam com a boca: -“Meus sentimentos! O doutor G
morreu moço, muito moço. E acrescentavam, refletindo: -“Morreu
tarde...Ainda bem que morreu.. Velhaco! Deixou uma fortuna considerável... Deve
ter roubado excessivamente”. Outras ainda, comentavam junto à carcaça
morta: -“Homem probo, homem justo!...E falavam de si para consigo:
-“Político ladrão e sem palavra! Que aterra lhe seja leve e que o inferno o
proteja!”.(...). Humilhado, aguardei paciente as surpresas da nova
situação. Estava inegavelmente morto e vivo. O caixão não
favorecia qualquer dúvida. Curtia dolorosas indagações, quando, em dado
instante, arrebataram-me o corpo. Achava-me livre para pensar, mas preso aos
despojos hirtos pelo estranho cordão que eu não podia compreender e, em razão
disso, acompanhei o cortejo triste, cauteloso e desapontado. A vizinhança do
cemitério abalava a escassa confiança que passara a sustentar em mim mesmo. O
largo portão aberto, a contemplação dos túmulos à entrada e a multidão que me
seguia, compacta, faziam-me estarrecer. (...). Clamei debalde por socorro, até
que, com os primeiros punhados de terra atirados sobre o esquife, caí na
sepultura acolhedora, sem qualquer noção de mim mesmo”. Diante de tão
minuciosa narrativa deixamos com você a pergunta: - Realismo fantástico ou realidade
provável?
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