Quando
surgiu o Espiritismo, a Revolução Industrial já provocava mudanças
significativas no panorama mundial em vista da necessidade de produção em
escala de alimentos e bens de consumo diante da densidade demográfica que seria
acelerada na passagem de um ciclo evolutivo para outro da Terra marcada por uma
transição turbulenta. A Revolução Tecnológica do século XX ‘turbinaria’ ainda
mais a primeira, materializando avanços somente antevistos por visionários do
passado. Nenhuma das duas mudanças contudo atendeu às mais remotas inquietações
humanas expressas nas cogitações filosóficas e religiosas ‘porque existimos’, ‘sofremos’,
etc. Esse o principal objetivo do Espiritismo como explica Allan Kardec com a
matéria com que abre a edição da REVISTA
ESPÍRITA de abril de 1867. Vejamos alguns de suas ponderações e argumentos:
-“Nem Moisés, nem o Cristo tinham de ensinar aos homens as leis da Ciência; o
conhecimento dessas leis devia ser o resultado do trabalho e das pesquisas do
homem, da atividade e do desenvolvimento de seu próprio espírito, e não de uma
revelação a priori, que lhe tivesse dado o saber sem esforço. Eles não deviam
nem podiam lhes ter falado senão numa linguagem apropriada ao seu estado
intelectual, sem o que não teriam sido compreendidos. Moisés e o Cristo tiveram sua missão moralizadora;
a gênios de uma outra ordem são deferidas missões científicas. Ora, como as
leis morais e as leis da Ciência são Leis Divinas, a religião e a filosofia só
podem ser verdadeiras pela aliança destas leis. O Espiritismo baseia-se na
existência do princípio espiritual, como elemento constitutivo do Universo;
repousa sobre a universalidade e a perpetuidade dos seres inteligentes, sobre
seu progresso indefinido, através dos mundos e das gerações; sobre a
pluralidade das existências corporais, necessárias ao seu progresso individual;
sobre sua cooperação relativa, como encarnados ou desencarnados, na obra geral,
na medida do progresso realizado; sobre a solidariedade que une todos os seres
de um mesmo mundo e dos mundos entre si. Nesse vasto conjunto, encarnados e
desencarnados, cada um tem sua missão, seu papel, deveres a cumprir, desde o
mais ínfimo até os anjos, que nada mais são que Espíritos humanos chegados ao
estado de Espíritos puros, e aos quais são confiadas as grandes missões, o
governo dos mundos, como a generais experimentados. Em vez das solidões
desertas do espaço sem limites, por toda parte a vida e a atividade, em parte
alguma a ociosidade inútil; por toda parte o emprego dos conhecimentos
adquiridos; em toda parte o desejo de progredir ainda e de aumentar a soma de
felicidades, pelo emprego útil das faculdades da inteligência. Em vez de uma
existência efêmera e única, passada num cantinho da Terra, que decide para
sempre de sua sorte futura, impõe limite ao seu progresso e torna estéril, para
o futuro, o trabalho a que se entrega para instruir-se, o homem tem por domínio
o Universo; nada do que sabe ou do que faz fica perdido: o futuro lhe pertence;
em vez do isolamento egoísta, a solidariedade universal; em lugar do nada,
segundo alguns, a Vida Eterna; em lugar da beatitude contemplativa perpétua,
segundo outros, que a tornaria de uma inutilidade perpétua, um papel ativo,
proporcionado ao mérito adquirido; em vez de castigos irremissíveis por faltas
temporárias, a posição que cada um conquista por sua perseverança no bem ou no
mal; em vez de uma mancha original, que o torna passível de faltas que não cometeu,
a consequência natural de suas próprias imperfeições nativas; em vez das chamas
do inferno, a obrigação de reparar o mal que se fez e recomeçar o que se fez
mal; em vez de um Deus colérico e vingativo, um Deus justo e bom, que leva em
conta todo arrependimento e toda boa vontade. Tal é, em resumo, o quadro que
apresenta o Espiritismo, e que ressalta da situação mesma dos Espíritos que se
manifestam; não é mais uma simples teoria, mas resultado da observação. O homem
que encara as coisas deste ponto de vista, sente-se crescer; ergue-se aos seus
próprios olhos; é estimulado em seus instintos progressivos ao ver um objetivo
para os seus trabalhos, para os seus esforços em se melhorar. Mas, para
compreender o Espiritismo em sua essência, na imensidade das coisas que ele
abarca, para compreender o objetivo e o destino do homem, não era preciso
relegar a Humanidade a um pequeno globo, limitar a existência a alguns anos,
rebaixar o Criador e a criatura. Para que o homem pudesse fazer uma ideia justa
de seu papel no Universo, era preciso que compreendesse, pela pluralidade dos
mundos, o campo aberto às suas explorações futuras e a atividade de seu
espírito; para recuar indefinidamente os limites da Criação, para destruir os
preconceitos sobre os lugares especiais de recompensa e de punição, sobre os
diferentes estágios dos céus, era preciso que penetrasse as profundezas do
espaço; que em lugar do cristalino e do empíreo, aí visse circular, em
majestosa e perpétua harmonia, os mundos inumeráveis, semelhantes ao seu; que
em toda parte seu pensamento encontrasse a criatura inteligente. A história da
Terra se liga à da Humanidade. Para que o homem pudesse desfazer-se de suas
mesquinhas e falsas opiniões sobre a época, a duração e o modo de criação do
nosso Globo, de suas crenças lendárias sobre o dilúvio e sua própria origem;
para que consentisse em desalojar do seio da terra o inferno e o império de
Satã, era preciso que pudesse ler nas camadas geológicas a história de sua
formação e de suas revoluções físicas. A Astronomia e a Geologia, secundadas
pelas descobertas da Física e da Química, apoiadas sobre as leis da Mecânica,
são as duas poderosas alavancas que atacarão os seus preconceitos sobre a sua
origem e o seu destino. A matéria e o espírito são os dois princípios
constitutivos do Universo. Mas o conhecimento das leis que regem a matéria
devia preceder o das leis que regem o elemento espiritual; só as primeiras
poderiam combater vitoriosamente os preconceitos, pela evidência dos fatos. O
Espiritismo, que tem como objetivo especial o conhecimento do elemento
espiritual, só podia vir depois; para que pudesse tomar o seu impulso e dar
frutos, para que pudesse ser compreendido em seu conjunto, era preciso que
encontrasse o terreno preparado, o campo do espírito humano liberto dos
preconceitos e das ideias falsas, se não na totalidade, ao menos em grande
parte, sem o que só se teria tido um Espiritismo acanhado, bastardo, incompleto
e misturado a crenças e práticas absurdas, como ainda hoje o é nos povos
atrasados. Se se considerar a situação das nações adiantadas, reconhecer-se-á
que ele veio em tempo oportuno, para preencher os vazios que se fazem nas
crenças. Galileu abriu o caminho. Rasgando o véu que ocultava o infinito,
alargou o domínio da inteligência e desferiu um golpe fatal nas crenças
errôneas; destruiu mais superstições e ideias falsas do que todas as
filosofias, porque as sapou pela base, mostrando a realidade. O Espiritismo
deve colocá-lo na classe dos grandes gênios que rasgaram a via, diminuindo as
barreiras opostas pela ignorância. As perseguições de que foi objeto, e que são
o quinhão de quem quer que ataque os preconceitos, fizeram-no grande aos olhos
da posteridade, ao mesmo tempo que rebaixaram os perseguidores. Quem é hoje
maior: ele ou eles?
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