Um dos principais
intelectuais do Espiritismo no Brasil ao longo do século 20, Herculano Pires é
pouco conhecido pelos estudiosos contemporâneos. Olhar crítico sobre o
comportamento daqueles que fundaram e dirigiam Obras Sociais em nome da
Doutrina Espírita, pelo conhecimento adquirido fez análises precisas sobre os
desvios revelados nas ações observadas. Na obra CURSO DINÂMICO DE ESPIRITISMO – o grande desconhecido
(paidéia,1979), várias dessas análises. Numa delas, sentimos a profundidade e
racionalidade de seus raciocínios.-“Tudo tem a sua utilidade na Natureza. O
Universo é teleológico, finalista, busca sempre e em tudo uma finalidade. Os
filósofos ante finalistas apoiam suas teorias no erro humano, de todos os
tempos, que interpreta a Natureza como criada especialmente para o homem. Esse
erro surgiu nas selvas, permaneceu nas civilizações primitivas e projetou-se
nas civilizações posteriores. Os próprios deuses e demônios de toda a Antiguidade
foram postos ao serviço do homem, que embora os reverenciando, pretendiam
utilizá-los como seus auxiliares. O Universo tem, naturalmente, uma finalidade
única e superior, em que todas as finalidades se conjugam num resultado único.
Mas esse resultado escapa às nossas possibilidades de pesquisa, de compreensão
e mesmo de imaginação. A mais inútil das coisas e os mais prejudiciais dos
seres são necessários. E ser necessário é ser indispensável, é pertencer a um
elo da cadeia inimaginável que Kardec nos apresenta nesta frase tantas vezes
repetida no Livro dos Espíritos: Tudo se encadeia no Universo. (...) O egoísmo,
a vaidade, o orgulho, a pretensão, a ambição representam elementos negativos da
constituição do ser humano, que devem ser eliminados. Mas essa eliminação não
se dá pelos métodos antigos das corporações religiosas, até hoje empregados,
apesar dos terríveis malefícios causados. Kardec e os Espíritos Superiores, em
suas comunicações, consideraram o egoísmo como verdadeira praga que impediu .o
desenvolvimento real do Cristianismo na Terra. Mas jamais aconselharam métodos
artificiais para o combate ao egoísmo. (...) Todos nós carregamos ainda as
marcas profundas e dolorosas, deformantes, do relacionamento humano na Terra.
Com a caridade os homens vão aprendendo a sair do egoísmo para o altruísmo, a
não pensar, apenas nos seus problemas particulares, a não dividir o seu tempo e
bem-estar apenas com os familiares, mas levar um pouco de si mesmos e dos seus
recursos para a família maior que sofre lá fora. É essa a finalidade do
princípio cristão da caridade no Espiritismo. Por isso a caridade espírita não
pode cercar-se de barreiras e dificuldades, de exigências e desconfianças. Deve
ser ampla e generosa, acessível a todos, evitando constranger ou humilhar os
que a recebem. O ego é como uma flor que primeiro se fecha no botão para depois
desabrochar na corola e por fim doar-se nos frutos. Tentemos visualizar o processo de formação do
ego, para compreendermos a função do egoísmo. A dialética espírita nos ensina
que o espírito (não individualizado, mas como o elemento espiritual
catalisador, capaz de atrair e aglutinar a matéria esparsa no espaço) liga-se à
matéria para lhe dar forma, estrutura. Podemos seguir esse processo no caso
humano, em que o ego aparece como um pivô da personalidade em formação, desde a
infância. A criança é egocêntrica, é um pivô em torno do qual giram as atenções
e as afeições da família. Ela se torna, naturalmente, no centro do mundo.
Porque esse é o meio de consolidação da sua individualidade. Tudo quanto ela
atrai e absorve do ambiente, do exemplo familial, das relações progressivas na
escola e nos brinquedos, é automaticamente centralizado no ego, que é o seu
ponto interior de segurança ante a dispersividade do mundo. O botão fechado
centraliza as suas energias, preparando o momento de abrir-se na corola
colorida e perfumada. Essa a primeira função do ego, e essa função não é
egoísta, mas centralizadora por necessidade de estruturação interna. Quando
essa estruturação se define como tal, a criança se abre timidamente para
oferecer ao mundo a sua contribuição inicial de beleza e ternura. E um novo ser
que surge no mundo, vestido com a roupagem da inocência, como diz Kardec, e ao
mesmo tempo trazendo a incógnita de um passado que se revelava pouco a pouco no
esquema de um destino com ideias e hábitos negativos que nos foram impostos à
força milênios de brutalidade civilizadora. Por isso o nosso tempo, em que
tomamos consciência do absurdo desse massacre universal realizado em nome de
Deus, mostra-se dominado por inquietações e desesperos, revolta e loucura,
psicopatias e obsessões que levam a espécie humana a todos os desvarios e ao
suicídio individual e coletivo. Temos de examinar essa situação à luz do Evangelho
desfigurado e mal interpretado, muitas vezes contraditado frontalmente pelas
teologias do absurdo.
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