Abrindo o número de dezembro
de 1868 da REVISTA ESPÍRITA,
Allan
Kardec reproduz o texto do discurso proferido na Sociedade Espírita de
Paris no dia primeiro do mês anterior. Diante
da recorrência do tema, reproduzimos
a seguir um trecho em que responde a uma duvida acalentada por muitos:O
Espiritismo é uma religião? Argumenta ele: Sim, sem dúvida, senhores! No
sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por
isto, porque é a Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão
de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas:
as próprias leis da Natureza. Por que, então, temos declarado que o Espiritismo
não é uma religião? Em razão de não haver senão uma palavra para exprimir duas
ideias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da
de culto; porque desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo
não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí mais
que uma nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em
matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de
cerimônias e de privilégios; não o separaria das ideias de misticismo e dos
abusos contra os quais tantas vezes a opinião se levantou. Não tendo o
Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra,
não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente
se teria equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e
moral. As reuniões espíritas podem, pois, ser feitas religiosamente, isto é,
com o recolhimento e o respeito que comporta a natureza grave dos assuntos de
que se ocupa; pode-se mesmo, na ocasião, aí fazer preces que, em vez de serem
ditas em particular, são ditas em comum, sem que, por isto, sejam tomadas por
assembleias religiosas. Não se pense que isto seja um jogo de palavras; a
nuança é perfeitamente clara, e a aparente confusão não provém senão da falta
de uma palavra para cada ideia. Qual é, pois, o laço que deve existir entre os
espíritas? Eles não estão unidos entre si por nenhum contrato material, por
nenhuma prática obrigatória. Qual o sentimento no qual se deve confundir todos
os pensamentos? É um sentimento todo moral, todo espiritual, todo humanitário: o
da caridade para com todos ou, em outras palavras: o amor do próximo, que
compreende os vivos e os mortos, pois sabemos que os mortos sempre fazem parte
da Humanidade. A caridade é a alma do Espiritismo; ela resume todos os deveres
do homem para consigo mesmo e para com os seus semelhantes, razão por que se
pode dizer que não há verdadeiro espírita sem caridade. Mas a caridade é ainda
uma dessas palavras de sentido múltiplo, cujo inteiro alcance deve ser bem
compreendido; e se os Espíritos não cessam de pregá-la e defini-la, é que,
provavelmente, reconhecem que isto ainda é necessário. O campo da caridade é
muito vasto; compreende duas grandes divisões que, em falta de termos
especiais, podem designar-se pelas expressões Caridade beneficente e caridade benevolente.
Compreende-se facilmente a primeira, que é naturalmente proporcional aos
recursos materiais de que se dispõe; mas a segunda está ao alcance de todos, do
mais pobre como do mais rico. Se a beneficência é forçosamente limitada, nada
além da vontade poderia estabelecer limites à benevolência. O que é preciso,
então, para praticar a caridade benevolente? Amar ao próximo como a si mesmo.
Ora, se se amar ao próximo tanto quanto a si, amar-se-o-á muito; agir-se-á para
com outrem como se quereria que os outros agissem para conosco; não se quererá
nem se fará mal a ninguém, porque não quereríamos que no-lo fizessem. Amar ao
próximo é, pois, abjurar todo sentimento de ódio, de animosidade, de rancor, de
inveja, de ciúme, de vingança, numa palavra, todo desejo e todo pensamento de
prejudicar; é perdoar aos inimigos e retribuir o mal com o bem; é ser
indulgente para as imperfeições de seus semelhantes e não procurar o argueiro
no olho do vizinho, quando não se vê a trave no seu; é esconder ou desculpar as
faltas alheias, em vez de se comprazer em as pôr em relevo, por espírito de
maledicência; é ainda não se fazer valer à custa dos outros; não procurar
esmagar ninguém sob o peso de sua superioridade; não desprezar ninguém pelo
orgulho. Eis a verdadeira caridade benevolente, a caridade prática, sem a qual
a caridade é palavra vã; é a caridade do verdadeiro espírita, como do
verdadeiro cristão; aquela sem a qual aquele que diz: Fora da caridade não há
salvação, pronuncia sua própria condenação, tanto neste quanto no outro mundo.
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