Como provam inúmeros relatos
contidos no extraordinário documentário em que se constitui a REVISTA ESPÍRITA publicada com recursos
próprios por Allan Kardec entre 1858 e 1869, os avanços alcançados pela
Doutrina Espírita resultaram de contribuições de vários colaboradores de várias
partes da Europa e algumas outras regiões da Terra à época. No número de janeiro
de 1865, encontramos o exemplo a seguir que, por sinal, oferece-nos
elementos para várias reflexões como as observadas por Kardec na continuidade.
Escreve ele: O Sr. Rul, membro da Sociedade de Paris, transmite-nos o fato que se
segue. Disse ele: “Em 1862 conheci um jovem surdo-mudo de doze ou treze anos.
Desejoso de fazer uma observação, perguntei aos meus Guias Protetores se me
seria possível evocá-lo. Como a resposta fosse afirmativa, fiz o rapaz vir ao
meu quarto e o instalei numa poltrona, com um prato de uvas, que ele se pôs a
chupar com ardor. Por meu lado, sentei-me a uma mesa. Orei e fiz a evocação,
como de costume. Ao cabo de alguns instantes minha mão tremeu e escrevi: Eis-me
aqui. “Olhei o menino: estava imóvel, olhos fechados, calmo, adormecido, com o
prato sobre os joelhos; cessara de comer. Dirigi-lhe as seguintes perguntas: P.
– Onde estás agora? Resp. – Em vosso quarto, em vossa poltrona. P. – Queres
dizer por que és surdo-mudo de nascença? Resp. – É uma expiação de meus crimes
passados. P. – Que crimes cometeste? Resp. – Fui parricida. P. – Podes dizer se
tua mãe, a quem amas tão ternamente, não teria sido, como teu pai ou tua mãe,
na existência de que falas, o objeto do crime que cometeste? “Em vão esperei a
resposta; minha mão ficou imóvel. Levantei de novo os olhos para o menino;
acabava de despertar e comia as uvas com apetite. Tendo, então, pedido aos guias
que me explicassem o que acabava de se passar, foi-me respondido: “Ele deu as informações que desejavas e Deus não permitiu que
te desse outras".(...) Allan Kardec comenta o fato: –Faremos
uma outra observação a respeito. Aqui, a prova de identidade resulta do sono
provocado pela evocação, e da cessação da escrita no momento de despertar.
Quanto ao silêncio guardado sobre a última pergunta, prova a utilidade do véu
lançado sobre o passado. Com efeito, suponhamos que a mãe atual desse menino
tenha sido sua vítima em outra existência, e que este tenha querido reparar
seus erros pela afeição que lhe testemunha; a mãe não seria dolorosamente
afetada se soubesse que o filho foi seu assassino? sua ternura por ele não
seria alterada? Foi-lhe permitido revelar a causa de sua enfermidade como
assunto de instrução, a fim de nos dar uma prova a mais de que as aflições
daqui têm uma causa anterior, quando tal causa não esteja na vida atual, e que
assim tudo é conforme à justiça; mas o resto era inútil e poderia ter chegado
aos ouvidos da mãe. Por isto os Espíritos o despertaram, no momento em que,
talvez, fosse responder. (...) Além
disso, o fato prova um ponto capital: não é somente depois da morte que o
Espírito recobra a lembrança de seu passado. Pode dizer-se que não a perde
jamais, mesmo na encarnação, porquanto, durante o sono do corpo, quando goza de
certa liberdade, o Espírito tem consciência de seus atos anteriores; sabe por
que sofre, e que sofre justamente; a lembrança não se apaga senão durante a
vida exterior de relação. Mas, em falta de uma lembrança precisa, que lhe
poderia ser penosa e prejudicar suas relações sociais, haure novas forças nos
instantes de emancipação da alma, se os soube aproveitar. Deve-se concluir do fato que todos os surdos-mudos tenham
sido parricidas? Seria uma consequência absurda, porque a justiça de
Deus não está circunscrita em limites absolutos, como a justiça humana. Outros
exemplos provam que esta enfermidade resulta, por vezes, do mau uso que o
indivíduo tenha feito da faculdade da palavra. Pois que! exclamarão, será justa
uma mesma expiação para duas faltas tão diferentes na sua gravidade? Mas os que
assim raciocinam ignoram que a mesma falta oferece infinitos graus de culpabilidade,
e que Deus mede a responsabilidade pelas circunstâncias? Aliás, quem sabe se
esse menino, supondo seu crime sem escusas, não sofreu duro castigo no mundo
dos Espíritos, e seu arrependimento e desejo de reparar não reduziram a
expiação terrena a uma simples enfermidade? Admitindo, a título de hipótese, já
que o ignoramos, que sua mãe atual tenha sido sua vítima, caso não conservasse
para com ela a resolução tomada de reparar sua falta pela ternura, por certo o
esperaria um castigo mais terrível, seja no mundo dos Espíritos, seja em nova
existência. A Justiça de Deus nunca falha e, por ser às vezes tardia, nada
perde por esperar; mas Deus, em sua bondade, jamais condena de maneira
irremissível, e sempre deixa aberta a porta do arrependimento. Se o culpado demora a aproveitá-lo, sofrerá por mais tempo.
Assim, dele sempre depende abreviar os seus sofrimentos. A duração da prova é proporcional à duração da resistência em se submeter à Lei do Progresso .
É assim que a Justiça de Deus se concilia com sua bondade e seu amor por suas
criaturas.
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