Nesta Dimensão em que nos
encontramos, em meio a tantas contradições, tantos valores invertidos,
crueldade, violência, sofrimentos, reencarnar não é uma punição? Allan
Kardec didaticamente explica o engano de quem assim pensa em artigo publicado
na
REVISTA ESPÍRITA de
junho de 1863. Diz ele: - A encarnação é, pois, uma necessidade
para o Espírito que, realizando a sua missão providencial, trabalha seu próprio
adiantamento pela atividade e pela inteligência, que deve desenvolver, a fim de
prover à sua vida e ao seu bem-estar. Mas a encarnação torna-se uma punição
quando o Espírito, não tendo feito o que devia, é constrangido a recomeçar sua
tarefa, multiplicando penosas existências corporais por sua própria culpa. Um
estudante não é graduado senão depois de ter passado por todas as classes. Essas
classes são um castigo? Não: são uma necessidade, uma condição indispensável de
seu progresso. Mas se, pela preguiça, for obrigado a repeti-las, aí está a
punição. Poder passar em algumas é um mérito. O que, pois, é certo é que a
encarnação na Terra é uma punição para muitos dos que a habitam, porque
poderiam tê-la evitado, ao passo que talvez dobrado, triplicado e centuplicado
a existência por sua própria culpa, assim retardando sua entrada em mundos
melhores. O que é errado é admitir em princípio a encarnação como um castigo.
Outra questão muitas vezes aventada é esta: Como o Espírito foi criado simples
e ignorante, com a liberdade de fazer o bem ou o mal, não haveria queda moral
para aquele que tomasse o mau caminho, desde que chega a fazer o mal que antes
não fazia? Esta proposição não é mais sustentável que a precedente. Só há queda
na passagem de um estado relativamente bom a um pior. Ora, criado simples e
ignorante, o Espírito está, em sua origem, num estado de nulidade moral e
intelectual como a criança que acaba de nascer. Se não fez o mal, também não
fez o bem. Nem é feliz, nem infeliz. Age sem consciência e sem
responsabilidade. Desde que nada tem, nada pode perder, como não pode
retrogradar. Sua responsabilidade não começa senão no momento em que se
desenvolve o seu livre-arbítrio. Seu estado primitivo não é, pois, um estado de
inocência inteligente e raciocinada. Conseguintemente, o mal que fizer mais
tarde, infringindo as leis de Deus, abusando das faculdades que lhe foram
dadas, não é um retorno do bem ao mal, mas a consequência do mau caminho por
onde se embrenhou. Isto nos conduz a outra questão. Por exemplo: É possível que
Nero, na sua encarnação como Nero, possa ter feito mais mal que na sua
precedente existência? A isto respondemos sim, o que não implica que na
existência em que tivesse feito menos mal fosse melhor. Antes de tudo, o mal
pode mudar de forma sem ser pior ou menos mal. A posição de Nero, como
imperador, tendo-o posto em evidência, o que ele fez ficou mais notado; numa
existência obscura pôde ter cometido atos igualmente repreensíveis, conquanto
em menor escala, e que passaram despercebidos. Como soberano, pôde mandar
incendiar uma cidade; como particular pôde queimar uma casa e fazer perecer a família.
Tal assassino vulgar, que mata alguns viandantes para os despojar, se estivesse
no trono seria um tirano sanguinário, fazendo em grande escala o que sua
posição só lhe permite fazer em escala reduzida. Considerando a questão de
outro ponto de vista, diremos que um homem pode fazer mais mal numa existência
que na precedente, mostrar vícios que não tinha, sem que isto implique uma
degenerescência moral. Muitas vezes são as ocasiões que faltam para fazer o
mal, quando o princípio existe latente; surge a ocasião e os maus instintos se
descobrem. A vida ordinária nos oferece numerosos exemplos: tal homem, que era
tido como bom, de repente exibe vícios que ninguém suspeitava, e que causam
admiração; é simplesmente porque soube dissimular ou porque uma causa provocou
o desenvolvimento do mau germe. É indubitável que aquele em que os bons
sentimentos estão fortemente arraigados nem mesmo tem o pensamento do mal;
quando tal pensamento existe, é que o germe existe: muitas vezes só falta a
execução. Depois, como dissemos, embora sob diferentes formas o mal não deixa
de ser o mal. O mesmo princípio vicioso pode ser a fonte de uma imensidade de
atos diversos, provenientes de uma mesma causa. O orgulho, por exemplo, pode
fazer cometer grande número de faltas, às quais se está exposto, enquanto o
princípio radical não for extirpado. Pode, pois, o homem, numa existência, ter
defeitos que não se tinham manifestado numa outra e que não passam de consequências
variadas de um mesmo princípio vicioso. Para nós, Nero é um monstro, porque
cometeu atrocidades. Mas acreditais que esses homens – pérfidos, hipócritas,
verdadeiras víboras que semeiam o veneno da calúnia, despojam as famílias pela
astúcia e pelo abuso de confiança, que cobrem suas torpezas com a máscara da
virtude para chegarem com mais segurança a seus fins e receberem elogios,
quando só merecem a execração – valham mais do que Nero? Com certeza, não.
Serem reencarnados num Nero para eles não seria um retrocesso, mas uma ocasião
para se mostrarem sob nova face. Como tais, exibirão os vícios que ocultavam;
ousarão fazer pela força o que faziam pela astúcia, eis toda a diferença. Mas
essa nova prova lhes tornará o castigo ainda mais terrível se, em vez de
aproveitar os meios que lhes são dados para reparar, deles se servirem para o
mal. E, entretanto, por pior que seja, cada existência é uma oportunidade de
progresso para o Espírito: ele desenvolve a inteligência, adquire experiência e
conhecimentos que, mais tarde, o ajudarão a progredir moralmente.
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