Preso a rotinas diárias que
incluem refeições objetivando a sustentação do corpo físico de que se serve ao
longo de uma encarnação, o Espírito após a morte se livra facilmente desses
condicionamentos? A resposta pode ser encontrada em matéria publicada por Allan
Kardec no número de junho de 1868 da REVISTA ESPÍRITA. Partindo de notícia
publicada no Journal de Sétif, de 23 de abril, tratando do necrológio que
publicou sobre padre Sr. Bizet da cidade de Sétif, na Bélgica, destacando que não
faltou nenhum habitante da localidade; estando as diferentes religiões reunidas
e misturadas para dizer um adeus a ele, os árabes, representados por alcaides e
magistrados muçulmanos; os israelitas pelo rabino e os principais notáveis
dentre eles; os protestantes por seu pastor, lá estavam, Evocado na Sociedade
Espírita de Paris, ele revelou um dado curioso: o reencontro com vários
concidadão mortos em epidemia de cólera que se abateu sobre a região,
implorando por comida. Comentando a informação que induziu a duvida natural
sobre a fome dos espíritos desencarnados, Kardec comenta: – “A quem quer que
não conheça a verdadeira constituição do Mundo Invisível, parecerá estranho que
Espíritos, que segundo eles são seres abstratos, imateriais, indefinidos, sem
corpo, sejam vítimas dos horrores da fome; mas o espanto cessa quando se sabe
que esses mesmos Espíritos são seres como nós; que têm um corpo, fluídico é
verdade, mas que não deixa de ser matéria; que, deixando seu invólucro carnal,
certos Espíritos continuam a vida terrestre com as mesmas vicissitudes, durante
um tempo mais ou menos longo. Isto parece singular, mas é, e a observação nos
ensina que tal é a situação dos Espíritos que viveram mais a vida material do
que a vida espiritual, situação por vezes terrível, porque a ilusão das
necessidades da carne se faz sentir, e se tem todas as angústias de uma
necessidade impossível de satisfazer. O suplício mitológico de Tântalo, nos
Antigos, acusa um conhecimento mais exato do que se supõe, do estado do Mundo
de além-túmulo, sobretudo mais exato que entre os modernos. Completamente diversa
é a posição dos que, desde esta vida, se desmaterializaram pela elevação de
seus pensamentos e sua identificação com a vida futura. Todas as dores da vida
corporal cessam com o último suspiro e logo o Espírito plana, radioso, no Mundo
Etéreo, feliz como o prisioneiro liberto de suas cadeias. Quem nos disse isto?
É um sistema, uma teoria? Alguém disse que deveria ser assim e se acredita sob
palavra? Não; são os próprios habitantes do mundo invisível que o repetem em
todos os pontos do globo, para ensinamento dos encarnados. Sim, legiões de
Espíritos continuam a vida corporal com suas torturas e suas angústias. Mas
quais? Os que ainda estão muito avassalados à matéria para dela se desprenderem
instantaneamente. É uma crueldade do Ser Supremo? Não; é uma lei da Natureza,
inerente ao estado de inferioridade dos Espíritos e necessária ao seu
adiantamento; é um prolongamento misto da vida terrena durante alguns dias,
alguns meses, alguns anos, conforme o estado moral dos indivíduos. Estariam
aptos para tachar de barbárie essa legislação, aqueles que preconizam o dogma
das penas eternas, irremissíveis, e as chamas do inferno como um efeito da
soberana justiça? Podem eles fazer um paralelo entre a situação temporária,
sempre subordinada à vontade do indivíduo de progredir, e a possibilidade de
avançar por novas encarnações? Aliás, não depende de cada um escapar a essa
vida intermediária, que, francamente, nem é a vida material, nem a vida
espiritual? Os espíritas a ela escapam naturalmente, porque, compreendendo o estado
do mundo espiritual antes de nele entrar, imediatamente se dão conta de sua
situação. As evocações nos mostram uma multidão de Espíritos que ainda se
julgam deste mundo: suicidas, supliciados que não suspeitam que estão mortos e
sofrem o seu gênero de morte; outros que assistem ao próprio enterro, como se
fosse o de um estranho; avarentos que guardam seus tesouros, soberanos que
julgam mandar ainda e que ficam furiosos por não serem obedecidos; depois de
grandes desastres marítimos, náufragos que lutam contra o furor das ondas; após
uma batalha, soldados que se batem; e, ao lado disto, Espíritos radiosos, que
nada mais têm de terrestre e são para os encarnados o que a borboleta é para a
lagarta. Pode perguntar-se para que servem as evocações, quando nos dão a
conhecer, até nos mais ínfimos detalhes, esse Mundo que nos espera a todos, ao
sairmos deste? É a Humanidade encarnada que conversa com a Humanidade
desencarnada; o prisioneiro que fala com o homem livre. Não, por certo elas
nada servem ao homem superficial que nisto só vê um divertimento; elas não lhe
servem mais do que a física e a química recreativas para a sua instrução. Mas
para o filósofo, observador sério, que pensa no amanhã da vida, é uma grande e
salutar lição; é todo um mundo novo que se descobre; é a luz lançada sobre o
futuro; é a destruição dos preconceitos seculares sobre a alma e a vida futura;
é a sanção da solidariedade universal que liga todos os seres. Dirão que se
pode ser enganado; sem dúvida, como se o pode sobre todas as coisas, mesmo as
que se vê e se toca; tudo depende da maneira de observar. O quadro que
apresenta o cura Bizet nada tem, pois, de estranho; vem, ao contrário,
confirmar, por mais um grande exemplo, o que já se sabia; e, o que afasta toda
ideia de reflexão de pensamentos, é que o fez espontaneamente, sem que ninguém
pensasse em chamar sua atenção sobre aquele ponto. Por que, então, teria vindo
dizer, sem que se lhe perguntasse, se aquilo era assim ou não? Sem dúvida a
isto foi levado para a nossa instrução. Aliás, toda a comunicação traz um cunho
de gravidade, de sinceridade e de modéstia, que é bem o seu caráter e que não é
próprio dos Espíritos mistificadores.
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