Madrugada de 24 de agosto de 1572, Paris, França. Os sinos de uma das catedrais da cidade anunciam o início de um dos mais tristes episódios escritos pela intolerância religiosa: a matança de seguidores do protestantismo, chamados pejorativamente de huguenotes. Autorizados pelo Rei Carlos IX, influenciado e pressionado por sua mãe Catarina de Médicis, cerca de dois mil na capital francesa, a princípio, e, nos próximos dias estimados setenta mil por todo País. Noite de 25 de maio de 1860, recinto da Sociedade Espírita de Paris. Allan Kardec lê para os participantes da reunião realizada naquele dia, a carta de um assinante da REVISTA ESPÍRITA registrando “curioso relato a ele feito por um amigo a quem perguntara em carta, a opinião sobre a presença ou não, junto a nós, das almas que amamos, e, sua convicção de que nossas almas mudam de envoltório muito rapidamente após a morte. Oficial da Marinha francesa, navegava a trabalho em algum lugar do mundo, quando respondeu a missiva recebida, afirmando não ter lido nada a respeito o que faria quando de seu retorno, revela, contudo, que desde quando tinha sete anos, começou a experimentar a convicção de ter sido assassinado durante os massacres da Noite de São Bartolomeu, embora não tivesse lido qualquer coisa a respeito. Guardava na memória detalhes desta cena sangrenta que jamais desapareceram. Desde a infância, via-se como um rapaz de vinte anos, rico, participando em um duelo, no qual foi morto. Sobre as ligações entre os que se amam, relatou uma experiência na qual encontrando a quilômetros de Lima, Peru, após vinte e cinco dias de viagem, despertou em lágrimas, com verdadeira dor no coração, sentindo-se possuído por profunda tristeza, fato registrado em seu diário. Àquela hora, saberia depois, seu irmão tinha sido atingido por um ataque de apoplexia, que comprometeu gravemente sua vida. Confrontando, posteriormente, dia e hora, tudo exato”. A exemplo de outros experimentos envolvendo pessoas vivas - ou encarnadas -, Allan Kardec cogitou de evocá-lo, sendo prevenindo da impossibilidade à vista de seu trabalho, considerando não estar, talvez, num momento propício, desperto em função de suas atividades se realizarem em variados fuso-horários. Sugeriram chamassem seu anjo da guarda, o qual diria se poderiam evocar seu protegido. Assim foi feito e nas doze perguntas feitas, apurou-se: 1- Realmente a evocação de seu protegido era inviável no momento, por vivenciar uma inquietude moral que o impedia de repousar fisicamente; 2 – Estava em terra; 3- Suas tormentosas lembranças eram verdadeiras, uma intuição real; 4- Realmente era um caso raro, presente nas suas visões, um pouco pelo gênero de morte que o impressionou fortemente naquela vida; 5- Não tivera outras existências depois daquela; 6- Morreu com uns trinta anos, era ligado à casa de Coligny, chamara-se Gaston Vincent, fora um simples soldado, morrera no cruzamento de Bucy; 7- Ainda não recebera cartas posteriores do amigo que levantara o problema; 8- Continuava atualmente seu anjo da guarda, função exercida naquela vida também. Em nota complementar, Allan Kardec observa: - “Céticos, antes gozadores que sérios, poderiam dizer que o anjo da guarda o guardou mal e perguntar por que não desviou a mão que o feriu. Posto que tal pergunta mereça apenas uma resposta, talvez algumas palavras a respeito fossem úteis. Para começar diremos que, se o morrer pertence à natureza humana, nenhum anjo da guarda tem o poder de opor-se ao curso das leis da Natureza. Do contrário, razão não haveria para que não impedissem a morte natural, tanto quanto a acidental. Em segundo lugar, estando o momento e o gênero de morte no destino de cada um, é preciso que se cumpra o destino. Diremos, por fim, que os Espíritos não encaram a morte como nós: a verdadeira vida é a do Espírito, da qual as várias existências corpóreas não passam de episódios. O corpo é um invólucro que o Espírito reveste momentaneamente e deixa como uma roupa usada ou “rasgada”. Pouco importa, pois, que se morra um pouco mais cedo ou tarde, de uma ou de outra maneira, pois que, em definitivo, sempre é preciso chegar à morte, que longe de prejudicar o Espírito, pode ser-lhe útil, conforme a maneira porque se realiza. É o prisioneiro que deixa a prisão temporária pela liberdade eterna. Pode ser que o fim trágico de Gaston Vincent lhe tenha sido útil, como Espírito, o que o seu anjo da guarda compreende melhor que ele, porque um só vê o presente, ao passo que o outro vê o futuro. Espíritos retirados deste mundo por uma morte prematura, na flor da idade, por vezes, nos responderam que era um favor de Deus, que assim os havia preservado dos males aos quais, sem isto, estariam expostos”.
Nós,
também – prezados ouvintes - ficamos
surpresos com a reação dessa senhora, pois sabíamos se tratar de uma pessoa de
bons princípios, inteligente e responsável. Foi, então, que ela desfilou uma
série de situações, que ocorreram dentro de sua família durante muitos anos, e
diante das quais agora se julgava fora dos princípios de moralidade que Jesus
havia ensinado há dois mil anos atrás. (Ela disse que nunca ouvira com tanta
clareza e simplicidade as lições de Jesus.} É claro que nos esforçamos para
ajudá-la a compreender que, se houve algum erro na sua trajetória, ela não
devia assumir toda a culpa ou, pelo menos, a culpa com tanta intensidade.
Surpreendeu-nos, sobretudo, o fato de ela
adotar uma religião (a da família, naturalmente), de sempre ter procurado
seguir alguns preceitos religiosos, mas não ter atentado para o que deve ser o
fundamental em qualquer religião, que é a vivência do amor no dia a dia,
conforme recomendação de Jesus. Muitos usam a religião como verniz social ou,
no máximo, para se desincumbir de certas obrigações que a religião impõe,
pensando com isso estar quites com Deus, mas que não são exatamente a prática
do bem, do exercício do amor, de esforço para compreender e perdoar o próximo –
aliás, tudo o que Jesus queria de nós.
O
sentimento de culpa por um erro cometido tem seu lado bom, quando serve para
despertar a pessoa para um novo caminho de reabilitação e trabalho no bem (
como fizeram Pedro e Paulo na história do cristianismo), mas esse sentimento
pode ser nocivo, quando se transforma num tribunal implacável de condenação de
si mesmo, como a pior das criaturas. No primeiro caso ( o de Pedro e Paulo), a
culpa leva ao arrependimento e o arrependimento leva ao esforço para reparar o mal cometido.
Pois
bem. Foi o que passamos a essa senhora
naquela ocasião, detalhando os exemplos dos grandes apóstolos de Jesus (Pedro e
Paulo) que, embora tivessem cometido graves erros, a partir de seu despertar
eles decidiram edificar o reino de Deus dentro de si mesmos. Deram exemplo de
responsabilidade e de altivez, voltando as costas ao passado e passando
construir um novo futuro. Contudo, não foi o que aconteceu com Judas
Iscariotes, que traiu Jesus – o qual, diante da gravidade do erro contra o
mestre, deixou-se arrastar pelo
desespero, acusando-se e anulando-se a si mesmo: ao invés de se levantar para
reconstruir o que havia danificado.
Infelizmente, Judas fracassou porque resolveu matar-se.
Evidentemente, os ensinamentos espíritas, ao
retomar a moral de Jesus, fundamentada no amor, com sua doutrina de esperança,
de conforto aos corações sofridos e principalmente aos mais desesperados, pôde abrir
um novo e promissor horizonte de conhecimento e de paz para aquela boa senhora,
de quem pudemos desfrutar a convivência por algum tempo, até sua desencarnação.
Temos certeza de que, no plano espiritual, decidida como ela foi na Terra,
retomou sua jornada no caminho da libertação para retornar, quem sabe, numa
condição espiritual melhor.
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