Vez ou outra circulam pela mídia impressa e eletrônica, noticias sobre a descoberta de crimes cometidos por serial-killers que além da violência imposta a suas vítimas, acabam devorando parte dos seus corpos por eles fragmentados. Muitas possíveis explicações são cogitadas para gestos tão extremos. O Espiritismo tem sua visão própria sobre tais fatos e, na REVISTA ESPÍRITA de fevereiro de 1866, encontramos comentário de Allan Kardec sobre o que se poderia chamar de recrudescimento da prática nalgumas ilhas do Oceano Pacífico, mais especificamente pertencentes à Oceania. A informação, publicada no jornal Le Monde, dá conta que em um ano toda a tripulação de quatro navios foram devorados pelos antropófagos das Novas Híbridas (hoje, Arquipélago das Vanuatu), da baia de Jérvis ou da Nova Caledônia, obrigando o almirantado inglês expedir às cidades marítimas que fazem armamentos para a Oceania uma circular aconselhando aos capitães de navios mercantes a tomar todas as precauções necessárias para evitar que suas tripulações sejam vítimas desse horroroso costume. Como explicar o comportamento de seres humanos capazes de devorar seus semelhantes? Segundo Allan Kardec, o “Espiritismo lhe encontra a mais simples solução, e a mais racional, na LEI DA PLURALIDADE DAS EXISTÊNCIAS, a que todos os seres estão submetidos, e, em virtude da qual progridem. Assim a alma dos antropófagos ainda estão próximas de sua origem, as faculdades intelectuais e orais são obtusas e pouco desenvolvidas e nelas, por isso mesmo, dominam os instintos animais. Allan Kardec observa, porém, que “essas almas não estão destinadas a ficar perpetuamente nesse estado inferior, que as privaria para sempre da felicidade das almas mais adiantadas. Crescem em raciocínio; esclarecem-se, depuram-se, melhoram, instruem-se em existências sucessivas. Revivem nas raças selvagens, enquanto não ultrapassarem os limites da selvageria. Chegadas a certo grau, deixam esse meio para encarnar-se numa raça um pouco mais adiantada; desta a uma outra e assim por diante, sobem em grau, em razão dos méritos que adquirem e das imperfeições de que se despojam, até atingirem o grau de perfeição de que é suscetível a criatura. Segundo ele, “a via do progresso a nenhuma está fechada; de tal sorte que a mais atrasada das almas pode pretender a suprema felicidade. Mas uma, em virtude do seu livre arbítrio, que é o apanágio da Humanidade, trabalham com ardor por sua depuração e sua instrução, em se despojar dos instintos materiais e dos cueiros da origem, porque a cada passo que dão para a perfeição veem mais claro, compreendem melhor e são mais felizes. Essas avançam mais prontamente, gozam mais cedo: eis a sua recompensa. Outras, sempre em virtude de seu livre arbítrio, demoram-se em caminho, como estudantes preguiçosos e de má vontade, ou como operários negligentes; chegam mais tarde, sofrem mais tempo; eis a punição ou, se se quiser, o seu inferno. Assim se confirma, pela pluralidade das existências progressivas, a admirável Lei da Unidade e de Justiça, que caracteriza todas as obras da Criação. Comparai esta Doutrina com outras, sobre o passado e o futuro das almas e vede qual a mais racional, mais conforme a Justiça Divina e que melhor explica as desigualdades sociais. Seguramente a antropofagia é um dos mais baixos degraus da escala humana na Terra, porque o selvagem que não mais come o seu semelhante já está em progresso. Mas de onde vem a recrudescência desse instinto bestial? É de notar, de saída, que é apenas local e que, em suma, o canibalismo desapareceu em grande parte da Terra. É inexplicável sem o conhecimento do Mundo Invisível e de suas relações com o Mundo Visível. Pelas mortes e nascimentos, alimentam-se um do outro, se derramam um no outro. Ora, os homens imperfeitos não podem fornecer no Mundo Invisível almas perfeitas e as almas perversas, encarnando-se, não podem fazer senão homens maus. Quando as catástrofes, os flagelos atingem de uma vez grande número de homens, há uma chegada em massa no mundo dos Espíritos. Devendo essas almas reviver, em virtude da lei da natureza, e para o seu adiantamento, as circunstâncias podem igualmente trazê-los em massa de volta para a Terra. O fenômeno de que se trata depende, pois, simplesmente da encarnação acidental, nos meios ínfimos, de um maior número de almas atrasadas, e não da malícia de Satã, nem da palavra de ordem dada ao povo da Oceania. Ajudando o desenvolvimento do senso moral dessas almas, durante a vida terrena, o que é missão dos homens civilizados, elas melhoram. E quando retomarem uma nova existência corpórea para progredir ainda, serão homens menos maus do que foram, mas esclarecidos, de instintos menos ferozes, porque o progresso realizado não se perde nunca. É assim que gradualmente se realiza o progresso da Humanidade.
Pergunta enviada pelo Cristiano, da cidade de Vera Cruz: “Existe lei de ação e reação no caso de homicídio cometido em estado de necessidade”
Bem, a questão que o Cristiano propõe é semelhante à anterior que nos enviou; isto é, é semelhante ao caso de homicídio por legítima defesa, no que se refere às suas consequências morais, de conformidade com a lei de causa e efeito. É bom esclarecer os ouvintes que, no Direito Penal, estado de necessidade é uma situação em que o indivíduo, para sobreviver, precisa investir contra o outro e até tirar-lhe a vida,
Um caso típico de estado de necessidade, sempre lembrado pelos manuais de direito penal, é aquele em que, após o barco afundar em alto mar, dois dos ocupantes percebem uma única tábua boiando sobre as águas que pode servir de salvação. Mas a tábua é suficiente para salvar apenas uma pessoa. Nesse caso, os dois partem desesperadamente para agarrar a tábua. Aquele que dela se apossar será salvo. Numa situação como essa, um deles investe-se contra o outro e o mata, agarrando-se, assim, à tábua e se salvando.
Um caso como esse caracteriza bem o que chamamos de homicídio por estado de necessidade. O direito penal entende que se trata de um crime exculpável, ou seja, a pessoa que praticou o homicídio não responderá por crime diante da lei, levando-se em consideração que a sua vida é o bem maior que ele teve o direito de defender. O Cristiano quer saber se, diante da Lei Divina, num caso como esse, aquele que matou fica livre de qualquer culpa e, portanto, não vai responder por isso.
É claro que a Lei Divina é perfeita, enquanto a lei humana é imperfeita, por mais bem elaborada que seja. É que a lei divina conta com instrumentos precisos de captar a verdade – não apenas em relação ao ato em si (no caso, o homicídio), mas em relação ao que se passa na intimidade de cada uma das partes envolvidas. Contudo, a lei humana, por mais que faça, jamais desvendará o verdadeiro sentimento dessas pessoas. Por essa razão, todo ato, por mais insignificante nos pareça, sempre terá uma repercussão na vida moral de quem o praticou, fazendo funcionar o lei de ação e reação.
No caso dos náufragos, que estamos usando para ilustrar, aquele que matou para sobreviver tem, de fato, um grande motivo a seu favor, a garantia de sua própria sobrevivência. Mas o fato de ter assassinado o outro lhe causará um sofrimento íntimo, ao qual estará ligado por tempo ou menos longo, nesta ou em outra vida, dependendo do desenvolvimento de sua consciência moral. A consciência moral é o nosso tribunal implacável. Mesmo fazendo o que achou que devia fazer, mesmo considerando que não podia fazer melhor, o fato de ter tirado uma vida terá repercussão na sua consciência com o passar o tempo.
É claro que não se tratou de um crime comum, mas de uma situação causada pelas circunstâncias, e isso vai lhe servir de conforto. Por isso mesmo, ele ficará com dois sentimentos conflitantes na consciência moral: o primeiro, que ele fez o que deveria ter feito para se salvar; o segundo, que tirou uma vida humana, talvez infelicitando outras pessoas. Geralmente, o Espírito diante desse conflito íntimo, em outra encarnação, procurará se aproximar daquele que foi sua vítima, para compensar de alguma maneira o mal que lhe causou.
Ainda assim, Cristiano, o problema pode não ficar definitivamente resolvido para ambos, pois depende também da condição espiritual da vítima. Se a vítima dessa disputa compreendeu e perdoou seu algoz, tudo tende a resolver mais depressa e com mais facilidade. Mas, se a vítima é um Espírito endurecido, não quer compreender e continua alimentando ódio contra seu agressor, ela poderá partir para a vingança.
Porém, o seu intento será bem ou mal sucedido – ou seja, ela conseguirá ou não se vingar - dependendo da atual condição espiritual de seu agressor, que poderá se encontrar ou não ao seu alcance. Fatos dessa natureza, Cristiano, devem ter acontecido com muita frequência ao tempo do Império Romano, quando escravos gladiadores eram treinados para matar uns aos outros em lutas corporais de espetáculos sangrentos nos circos romanos.
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