A carta da senhora Angelina de Ogé, da cidade marítima de Marennes, região sudoeste da França, além de agradecer as preces formuladas em seu favor na Sociedade Espírita de Paris para seu restabelecimento das inexplicáveis e renitentes febres de que fora acometida por meses de forma intermitente, relatava fato curioso que vivenciara. Informada da visita do pai para passar alguns dias em sua casa, reservou e mobiliou um quartinho para ele, desejando que ninguém dormisse ali antes dele. Conta que desde o momento em que manifestou tal pensamento, teve a intuição de que quem se deitasse naquela cama morreria, ideia que passou a persegui-la incessantemente, oprimindo seu coração a ponto de não ousar mais ir àquele quarto. Contudo, na esperança de se desembaraçar dela, foi orar junto ao leito. Julgou ver ali um corpo, e, na intenção de se assegurar tratar-se de uma ilusão, levantou os lençóis, nada mais vendo. Refletindo tratarem-se esses pressentimentos de ilusões ou resultado de obsessões, no mesmo instante ouviu suspiros como de uma pessoa que morre, sentindo sua mão direita apertada fortemente por mão quente e úmida, saindo do quarto para não mais adentrá-lo. Durante seis meses foi atormentada por este triste aviso e, quando finalmente seu pai chegou, caiu doente, morrendo ao cabo de oito dias, emitindo os últimos suspiros da mesma forma que vira, segurando e apertando-lhe a mão direita, do mesmo modo antevisto. Tal perda, evidentemente, causou-lhe intensa dor, tanto maior quando recordava do aviso recebido ao qual não dera crédito. No número de janeiro de 1868 da REVISTA ESPÍRITA, encontramos um artigo escrito por Allan Kardec abordando o interessante fato. Logo no início destaca dois pontos: a importância de se orar pelos doentes, e, segundo, uma nova prova da assistência dos Espíritos pela inspiração. Destaca seja talvez “um dos gêneros mais comuns de mediunidade, e que vem confirmar o princípio que todo mundo é mais ou menos médium sem o suspeitar. Seguramente, se cada um se reportasse às diversas circunstâncias de sua vida, observasse com cuidado os efeitos percebidos em si ou de que foi testemunha, não haveria ninguém que não reconhecesse ter alguns efeitos de mediunidade inconsciente”. Considera, todavia, que “o fato mais saliente é o aviso da morte do pai da senhora de Ogé, e o pressentimento com que foi perseguida durante seis meses. Sem dúvida, quando ela foi orar nesse quarto e acreditou ver um corpo no leito, que constatou estar vazio, poder-se-ia, com alguma verossimilhança admitir o efeito da imaginação. O mesmo poderia ser atribuído a um efeito nervoso, provocado pela superexcitação de seu Espírito. Mas como explicar a coincidência de todos esses fatos com o que se passou quando da morte do pai? Dirá a incredulidade: puro efeito do acaso; diz o Espiritismo: fenômeno natural devido à ação dos fluidos cujas propriedades até hoje foram desconhecidas, submetidos à lei que rege as relações do Mundo Espiritual com o Mundo Corporal. Ligando as leis da natureza a maior parte dos fenômenos reputados sobrenaturais, o Espiritismo vem precisamente combater o fanatismo e o maravilhoso, que o acusam de querer fazer reviver; ele dá dos que são possíveis uma explicação racional, e demonstra a impossibilidade dos que seriam uma derrogação das Leis da Natureza. A causa de uma porção de fenômenos está no princípio espiritual, cuja existência vem provar. Mas como os que negam esse princípio podem admitir suas consequências? Aquele que nega a alma e a vida extracorporal não pode reconhecer seus efeitos. (...). Se o pai da senhora Ogé tivesse morrido sem o que ela o soubesse, na época em que sentiu os efeitos de que falamos, esses efeitos se explicariam da maneira mais simples. Desprendido do corpo, o Espírito teria vindo avisá-la de sua partida deste mundo, e atestar sua presença por uma manifestação sensível, com a ajuda de seu fluido perispiritual. Isto é muito frequente. Compreendemos perfeitamente que aqui o efeito é devido ao mesmo princípio fluídico, isto é, à ação do períspirito. Mas como a ação material do corpo, que ocorreu no momento da morte, pôde produzir-se identicamente seis meses antes dessa morte, quando nada de ostensivo, doença ou outra causa, podia fazê-la pressentir?”. Eis a explicação a respeito, dada na Sociedade de Paris: -“O Espírito do pai dessa senhora, em estado de desprendimento, tinha conhecimento antecipado de sua morte e da maneira por que ela se realizaria. Sua visão espiritual abarcando certo espaço de tempo, lhe mostrou a coisa como presente; embora no estado de vigília não conservasse qualquer lembrança. Foi ele mesmo que se manifestou à filha, seis meses antes, nas condições que deviam se produzir, a fim de que, mais tarde, ela soubesse que era ele e que, estando preparada para uma separação próxima, não ficasse surpresa com sua partida. Ela própria, em Espírito, tinha conhecimento disto, porque os dois Espíritos se comunicavam em seus momentos de liberdade. É o que lhe dava a intuição de que alguém devis morrer naquele quarto. Essa manifestação ocorreu igualmente com o fito de fornecer um ensinamento, tocante ao conhecimento do Mundo Invisível”.
Cristiano, da cidade de Vera Cruz, volta ao programa para perguntar o seguinte: “Como entender a publicação em massa de obras psicografadas de conteúdo antidoutrinário?”
Primeiramente, Cristiano, pedimos sua permissão para procurar esclarecer sobre o sentido de sua pergunta. Quando ele fala de conteúdos antidoutrinários, deve se referir a livros que fazem alguma afirmação diferente ou contrária ou que diz a Doutrina Espírita – ou mais precisamente, contrário a algum de seus princípios fundamentais - a partir das obras de Allan Kardec.
A Doutrina Espírita, também chamada de Espiritismo, surgiu na França a partir dos trabalhos de Allan Kardec com a publicação d’O LIVRO DOS ESPÍRITOS, em abril de 1857. Portanto, antes de Kardec não havia Espiritismo, embora muitas ideias que o Espiritismo adotou já existissem de alguma forma e até sob outras denominações, como, por exemplo, a crença na manifestação dos Espíritos, a reencarnação, etc., e continuaram a existir em outras doutrinas, que vieram após o Espiritismo.
A Doutrina Espírita, portanto, veio tratar de questões que já existiam dentro das próprias religiões, que já eram discutidas, mas muito pouco compreendidas (por falta de estudos e metodologia adequada), sobre as quais não havia uma doutrina específica que as enfeixassem dentro de único corpo doutrinário. Os Espíritos Superiores, na verdade, aguardavam um momento propício no desenvolvimento das ciências humanas para reuni-las numa única ciência, que é o Espiritismo, que foi revelado através de Allan Kardec.
Depois de Kardec, várias outras doutrinas surgiram, algumas bem próximas do Espiritismo, mas que por terem outras características, não podem ser confundidas com ele. Desse modo, ainda hoje alguns autores ainda perambulam entre elas e o Espiritismo por causa de algumas semelhanças, de modo que podemos encontrar obras que ferem os princípios fundamentais da doutrina e podem passar por obras espíritas. Nem todo livro que trata da vida após a morte e de reencarnação é espírita.
Vamos dar um exemplo: um livro que dissesse que “há Espíritos, mas os Espíritos não se comunicam” seria uma obra antidoutrinária, pois a comunicabilidade dos Espíritos é um dos princípios fundamentais da Doutrina Espírita. A obra de Allan Kardec, por outro lado, foi consolidada com a publicação de seus livros, em especial, O LIVRO DOS ESPÍRITOS, O LIVRO DOS MÉDIUNS, O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, O CÉU E O INFERNO e A GÊNESE.
O prof. Herculano Pires, a esse respeito, diz com muita propriedade que nas obras de Allan Kardec estão o alicerce e o arcabouço da doutrina, e o que vier depois devem estar de acordo com seus princípios gerais. Quais são esses princípios. Podemos resumi-los nos seguintes:: existência de Deus, imortalidade da alma, comunicabilidade dos Espíritos, reencarnação, lei de evolução, pluralidade dos mundos habitados, a moral ensinada por Jesus, a fé raciocinada.
Allan Kardec deixou bem claro em sua obra que o Espiritismo é uma doutrina que marcha com o progresso. Portanto, não poderia estacionar em Kardec, mas ir adiante, conforme o progresso intelectual da humanidade, principalmente da ciência. Ele chegou a dizer que se a ciência provar que o Espiritismo está errado num determinado ponto, o Espiritismo mudará nesse ponto, pois o conhecimento não é estacionário, está sempre se amplicando e se aprofundando. No entanto, mesmo assim, os princípios fundamentais – esses que acabamos de citar – não podem ser contrariados, pois constituem a base sobre a qual novos conhecimentos se assentarão ao longo do tempo.
Logo, sem afetar as ideias básicas da doutrina, é possível ir acrescentando à doutrina novos conhecimentos de acordo com o progresso intelectual da humanidade. E, assim, qualquer afirmação, que contraria um desses princípios gerais, não está de acordo com o Espiritismo, pois o Espiritismo, como doutrina, só pode ser entendido se abraçar todos esses princípios ao mesmo tempo, sem exclusão de nenhum. Logo, se alguém diz, por exemplo, “não existe reencarnação”, essa pessoa pode estar falando em seu próprio nome ou em nome de outra doutrina, mas ela não pode estar falando em nome do Espiritismo.
Por tal razão é que o leitor só poderá fazer um juízo espírita de uma obra que leu, se tiver um conhecimento mínimo de Espiritismo com base nas obras fundamentais de Allan Kardec. Há livros, principalmente romances, que pretendem falar em nome do Espiritismo, mas ao mesmo tempo ferem algum princípio da doutrina, geralmente porque as ideias do autor estão impregnadas de concepções que vêm de outras doutrinas espiritualistas.
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