No número de janeiro de 1864 da REVISTA ESPÍRITA, Allan Kardec responde a uma pergunta cuja resposta certamente é procurada por muitos. A indagação propõe a seguinte situação: “-Duas almas, criadas simples e ignorantes, nem conhecem o bem, nem o mal, ao virem à Terra. Se, numa primeira existência, uma seguir a via do bem e a outra, a do mal, como, de certo modo, é o casos que as conduz, nem merecem expiação nem recompensa. Essa primeira encarnação não deve ter servido senão para dar a cada uma delas a consciência de sua existência, consciência que antes não tinham. Para ser lógico, seria preciso admitir que as expiações e as recompensas não começariam a ser inflingidas ou concedidas senão a partir da segunda encarnação, quando os Espíritos já soubessem distinguir entre o Bem e o mal, experiência que lhes faltaria quando de sua criação, mas que adquiriam por meio da primeira encarnação. Tal opinião tem fundamento?”. Como consta n’ O LIVRO DOS ESPÍRITOS, “o princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco, após o que sofre uma transformação e se torna Espírito, começando para ele o período de Humanidade. Essa primeira fase – embora existam exceções -, é geralmente cumprida numa série de existências que precedem o período chamado humanidade, não sendo a Terra o ponto de partida da primeira encarnação humana, iniciada em mundos ainda mais inferiores”. .Dizem ainda que “como na natureza nada se faz de maneira brusca, durante algumas gerações o Espírito pode conservar um reflexo mais ou menos pronunciado do estado primitivo, traços que desaparecem com o desenvolvimento do livre arbítrio. Os primeiros progressos se realizam lentamente, porque não são ainda secundados pela vontade, mas seguem uma progressão mais rápida à medida que o Espírito adquire consciência mais perfeita de si mesmo”. Esclarecendo a dúvida levantada. Kardec escreveu: “- Ignoramos absolutamente em que condições se dão as primeiras encarnações do Espírito(...). Apenas sabemos que são criadas simples e ignorantes, tendo todas, assim, o mesmo ponto de partida, o que é conforme à justiça; o que sabemos ainda é que o livre arbítrio só se desenvolve pouco a pouco, após numerosas evoluções na vida corpórea. Não é, pois, nem após a primeira, nem após a segunda encarnação que a alma tem consciência bastante nítida de si mesma, para ser responsável por seus atos; talvez só após a centésima ou milésima. Dá-se o mesmo com a criança, que não goza da plenitude de suas faculdades nem um, nem dois dias após o nascimento, mas depois de anos. E, ainda, quando a alma goza do livre-arbítrio, a responsabilidade cresce em razão do desenvolvimento da inteligência. Assim, por exemplo, um selvagem que come os seus semelhantes é menos castigado que o homem civilizado, que comete uma simples injustiça. Sem dúvida os nossos selvagens estão muito atrasados em relação a nós e, contudo, já estão bem longe de seu ponto de partida. Durante longos períodos a alma encarnada é submetida a influência exclusiva dos instintos de conservação; pouco a pouco esses instintos se transformam em instintos inteligentes ou, melhor dito, se equilibram com a inteligência; mais trade, e sempre gradativamente, a inteligência domina os instintos. Só então é que começa a séria responsabilidade. Além disso, o autor da pergunta comete dois erros graves: o primeiro é o de admitir que o acaso decida do bom ou do mau caminho que o Espírito segue em seu princípio. Se houvesse acaso ou fatalidade, toda responsabilidade seria injusta. Como dissemos, o Espírito fica num estado inconsciente durante numerosas encarnações; a luz da inteligência só se faz pouco a pouco e a responsabilidade real só começa quando o Espírito age livremente e com conhecimento de causa. O segundo erro é o de admitir que as primeiras encarnações ocorram na Terra. A Terra foi, mas não é mais, um mundo primitivo; os mais atrasados seres humanos encontrados na sua superfície já se despojaram das primeiras fraldas da encarnação e os nossos selvagens estã em progresso, comparativamente ao que eram antes que seu Espírito viesse a encarnar neste Globo. Julgue-se agora o número de existências necessárias a esses selvagens para transporem todos os degraus que os separam da mais adiantada Civilização. Todos esses degraus intermediários se acham na Terra sem interrupção, e podem ser seguidos observando as nuanças que distinguem os vários povos; só o começo e o fim aí não se encontram.; o começo se perde nas profundezas do passado, que não nos é dado penetrar. Alias isto pouco importa, pis tal conhecimento em nada nos adiantaria. Não somos perfeitos, eis o que é positivo; sabemos que nossas imperfeições são o único obstáculo à felicidade futura; assim, estudemo-nos, a fim de nos aperfeiçoarmos. No ponto em que estamos, a inteligência está bastante desenvolvida para permitir ao homem julgar sadiamente o bem e o mal; e é também deste ponto que a sua responsabilidade é mais seriamente empenhada, porque não mais se pode dizer o que dizia Jesus: “-Perdoai-lhes, Senhor, pois não sabem o que fazem.”
Se Jesus amava escribas e fariseus, como entender sua atitude em relação a eles, quando disse: “ Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que vos assemelhais a sepulcros caiados, que por fora parecem belos aos olhos dos homens, mas que por dentro estais cheios de ossadas de mortos e de toda espécie de podridão! Assim, por fora, pareceis justos, enquanto que por dentro estais cheios de hipocrisia e iniquidade! Serpentes, raça de víboras, como podereis evitar a condenação do inferno?” A pergunta é do Cristiano, da cidade de Vera Cruz.
Muito oportuna sua pergunta, Cristiano. Precisamos considerar alguns pontos. Primeiro, Jesus desmascarava a hipocrisia, o fingimento, as falsas aparências, combatendo o desrespeito e a violência com que os pobres e sofredores eram tratados; segundo, Jesus não se dirigia a todos os escribas e a todos os fariseus indiscriminadamente, mas somente àqueles que exploravam o povo; terceiro, mesmo amando o que erram, Jesus não podia concordar com o erro que eles cometiam.
Em nenhum momento das narrativas evangélicas vamos encontrar Jesus advogando em causa própria – ou seja, não vemos Jesus defendendo-se a si mesmo. Ele se expunha para defender os pobres e sofredores, os fracos e abandonados, ele defendia o ser humano em geral, o que também deveria ser feito por todo homem de bem. E, ao mesmo tempo, ele ensinava o amor – o amor até mesmo aos inimigos – para mostrar que não eram propriamente pessoas que ele condenava ( porque todos são filhos de Deus e Deus não condena ninguém), mas os erros que essas pessoas cometiam ao agir com ignorância, impiedade e hipocrisia.
Existem muitas formas de demonstrarmos amor, Cristiano, mas uma delas sem dúvida, e talvez a mais difícil, é quando temos de agir com energia e firmeza com aqueles a quem amamos. Não porque queremos prejudicá-los ( é claro!) , mas porque desejamos ajudá-los. Este é o grande desafio dos pais em relação aos filhos, principalmente hoje. Muitas vezes, os filhos se revoltam contra seus pais, porque os acham duros e impiedosos, mas esses pais, que querem o seu bem, se veem obrigados a tomar atitudes desagradáveis para desviá-los do mau caminho.
Esta mesma condição, Cristiano, podemos atribuir a Jesus em muitos momentos, principalmente quando se dirigia aos fariseus – que se colocavam como seus principais opositores, querendo afastá-lo de sua missão. Essa oposição se dava pelo fato de Jesus combater a exploração do povo, procurando mantê-lo na ignorância e condicionando-o a submeter-se cegamente a práticas e usos que não mais condiziam a necessidades e aspirações da época. Muitos fariseus assim faziam, ensinando que a prática religiosa se resumia na observância dos rituais, do jejum e do pagamento do dízimo, com o que Jesus não concordava.
Para ele, mais do que as obrigações externas que a religião exigia há séculos, desde Moisés, e que eram extremamente pesadas para o povo, o que valia mesmo para Jesus era a prática do bem, a demonstração clara e viva do amor ao próximo, a vivência da compreensão, da tolerância e do perdão - ou seja, o esforço que cada um poderia fazer para se tornar uma pessoa melhor, mais justa, mais verdadeira e mais bondosa.
Ora, Jesus, que só praticava e ensinava o bem e a verdade, não poderia odiar os adversários, mesmo por aqueles que queriam destruí-lo, porque se assim fizesse poria por terra tudo o que ensinara, todo ideal que pretendia cultivar no coração daquele povo. Contudo, não poderia ser omisso e se calar diante do mal. Ele, que acreditava na transformação moral do ser humano, esperava que todos – inclusive os escribas e os fariseus – um dia refletisse melhor sobre seus ensinos, neles descobrindo o caminho da felicidade.
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